Cerca de dois meses após a intervenção militar no Rio de Janeiro, planejada para durar dez, o assunto continua gerando controvérsia, seja entre aqueles que são contra, que agora começam a ver, como se imaginava, que o show pirotécnico do exército não está produzindo resultados reais, seja por aqueles que são a favor, e culpam a ineficácia da ação ao fato do exército não poder instalar uma corte marcial no morro e entrar atirando a torto e a direito. Como acontece na maioria das vezes no Brasil, a tendência é que a situação, por motivos diferentes, desagradem toda a sociedade, seja inútil em relação ao crime organizado, mas eleja candidatos em outubro.
No entanto, independente do resultado que a medida venha a ter, é curioso essa visão do exército como solução para a questão da favela quando, em especial no Rio de Janeiro, ele está intimamente ligado à seu surgimento.
No final do século XIX, durante a Guerra de Canudos, os soldados brasileiros enviados para enfrentar Antonio Conselheiro utilizaram como base um morro ao redor de Canudos chamado de Morro da Favela, graças a uma planta de mesmo nome que dominava a região.
Vencida a guerra, os soldados teriam direito ao pagamento do Soldo, que consistiria em residências em caso de vitória. Findo o conflito, o exército brasileiro descumpriu sua promessa, não realizando nenhum pagamento. Ao retornarem ao Rio de Janeiro de mão abanando, os soldados se apropriaram do Morro da Providência, na região central do Rio, que logo passou a ser conhecido como Morro da Favela, provavelmente em homenagem ao lugar que ocuparam no interior baiano.
Apesar de já ocupado por alguns casebres de ex-escravos, o morro viu sua população aumentar para quase dez mil pessoas em 1897, após o fim da guerra de Canudos. Surgia assim a primeira favela brasileira, bem como o próprio termo “Favela”, que passou a ser adotado para as comunidades que surgiriam nos outros morros.
Esse tipo de contexto é absolutamente importante, principalmente para desmistificar uma falsa noção de que as grandes cidades eram perfeitas até que retirantes chegassem e dominassem os morros. O marco zero das favelas no Rio de Janeiro tem a assinatura do exército que, em algumas versões do fato, teria até mesmo anuído com a ocupação do morro pelos soldados. O mesmo exército que agora é visto como uma salvação para o problema.
Isso não significa, obviamente, que ele nunca possa se envolver na questão apenas para evitar a ironia, mas serve de (mais um) lembrete histórico para um país que tem o conveniente hábito de esquecer o que não quer lembrar, preencher o espaço com sua própria memória seletiva e, no fim, alegar que o passado não importa mais graças a distância temporal. O passado importa. Nós vivemos, hoje, consequências de cem anos atrás, assim como no século que vem os próximos viverão com as decisões que tomarmos agora. E não podemos, jamais, fugir dessa responsabilidade.
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