Talvez só a literatura infanto-juvenil nos ajude a entender o Brasil de Bolsonaro
Já li tentativas de explicar o atual governo a partir de 1984, Fahrenheit 451, Não Vai Acontecer Aqui, Complô Contra a América, A Onda e até Frankenstein. Nada aconteceu. E talvez o problema seja que estas obras, apesar do sucesso entre os apaixonados por literatura, não são exatamente populares para o que chamamos (pejorativamente?) de “público em geral”. Diante disso, resolvi me basear na saga mais popular de todos os tempos (ps: Haverá spoilers. O último livro foi lançado em 2007 e a saga já vendeu 500 milhões de cópias; se você não leu até hoje, convenhamos, não lerá mais).
Há uma máxima para este tipo de livro que diz que sua história é tão boa quanto seu vilão, e no caso do menino bruxo ela se confirma, pois Voldemort funciona.
Claramente inspirado em Hitler e seu regime fascista, Aquele-que-não-deve-ser-nomeado é um obcecado pela pureza do sangue bruxo (apesar de não ser, como Hitler não era, “puro”) que vive na luta pela tomada de poder e escravização e eliminação dos que se opuserem a ele. Aqui, provavelmente, eu já estraguei a obra para algum bolsonarista apaixonado por Harry, mas não é culpa minha - releia os livros, e você verá que os sete volumes são sobre a tentativa de um regime fascista para conquistar o poder e a resistência de um grupo que acredita na igualdade e liberdade de todos, vide este trecho de Dumbledore: “...seremos tão fortes quanto formos unidos e tão fracos quanto formos desunidos. O talento de Lord Voldemort para disseminar a desarmonia e a inimizade é muito grande. Só podemos combatê-lo mostrando uma ligação igualmente forte de amizade e confiança. As diferenças de costumes de língua não significam nada se os nossos objetivos forem os mesmos e os nossos corações forem receptivos”. No Brasil de hoje, Dumbledore seria considerado o Che Guevara.
Ao longo de duas décadas, acompanhamos a história se desenvolver até o clímax, quando Voldemort finalmente toma o poder. No entanto, esse desenvolvimento se dá de uma forma interessante: nos primeiros três livros, o vilão reaparece em casos isolados, apenas mostrando que ainda existe. A partir do quarto ele ressurge de vez; no quinto, ele ganha força enquanto o mundo tenta negar sua existência; e nos dois últimos, se torna o grande ditador, derruba as instituições, e seus seguidores, Comensais da Morte, voltam a andar na rua praticando todo tipo de absurdo, sem precisar se esconder. Quem diria que uma obra inglesa de fantasia para crianças teria tantos paralelos com o Brasil moderno?
Em situações de comédia como os quadros do CQC, nosso Voldemort de verde amarelo também começou em casos isolados que eram tratados como piada. Ganhou força enquanto se tentava relativizar, ou até negar, suas ações, até chegarmos ao 7 de setembro da última terça-feira, em que milhares de pessoas saíram às ruas para pedir intervenção militar, estado de sítio e sabe-se lá mais o quê (confesso que até agora tenho dificuldade para compreender a real intenção da turba), enquanto o presidente do país discursava, não para aplacar a situação, mas alimentando seus seguidores. A única diferença, apesar da breguice ser a mesma, são as roupas: ao invés dos capuzes pretos demodê dos livros, cojuntinho verde e amarelo.
Para nossa sorte, no entanto, as semelhanças param por aí.
A única mágica do presidente até hoje é nunca ter sido julgado, nem ele e nem seus filhos, pelas infinitas denúncias de rachadinha. De resto, ele ameaça um golpe que claramente não tem forças para dar. Sobra isso: inflamar sua massa numa tentativa de mantê-la engajada, e iludida, até a eleição do ano que vem. Se quisermos encontrar algo em comum com o Lord das Trevas, é a audácia: no caso, a audácia de subir num palco com o país numa crise financeira, energética, ambiental e social, e dizer que nosso maior problema é o STF que o impõe limites (e investiga).
Para finalizar, vou romper todas as barreiras do ridículo e fazer uma análise usando Harry, o personagem, como um paralelo para democracia. Estão prontos? Lá vai: Ao final da saga, descobrimos que Voldemort dividiu sua alma em fragmentos, e por isso é imortal. O que ele não sabia, no entanto, é que o último fragmento era o próprio Harry. Ao tentar eliminá-lo, o vilão elimina também o último fragmento que o mantinha imortal, e logo em seguida é derrotado. Nosso presidente faz o mesmo com a democracia. A cada novo ataque, ele, que foi eleito democraticamente, se afasta cada vez mais de qualquer chance de continuar no poder, pois, independentemente das ameaças, haverá eleições ano que vem, e a democracia que o colocou lá é a mesma que irá tirá-lo. Pelo menos, é o que eu torço.
Se, por outro lado, eu estiver errado, espero que pelo menos me deixem levar um livro pra minha cela no DOPs. Não Harry Potter. A série é boa, mas tem muita coisa melhor para ler.
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