Com um cartel de 50 vitórias, 44 por K.O., Mike Tyson foi um desses atletas que não se vê duas vezes numa mesma vida. Vencedor incontestável dos pesos-pesados, um fenômeno que tomou o mundo do boxe, catapultou a popularidade do esporte, e cujo comportamento e carisma atraia constante atenção de público e mídia. No começo dos anos 90, no entanto, a vida do boxeador, cada vez mais cercada de polêmicas, parecia fora de controle, culminando com a perda do cinturão para o azarão Buster Douglas, o que não frustrou apenas apostadores como também os fãs que aguardavam pela próxima luta: se, como esperado, Tyson derrotasse Douglas (seria o décimo desafio pelo cinturão vencido pelo pugilista), a luta seguinte seria contra Evander Hollyfield, astro em ascensão, luta que demorou quase uma década para acontecer, não só pela derrota, mas pelo que se seguiu depois.
Em 1991, Mike Tyson participou como jurado de um concurso de beleza em Indianapolis, nos EUA. Pouco tempo depois, foi preso acusado de estuprar a Miss Black Rhode Island, Desiree Washington, participante do concurso. Foi o maior circo midiático até então nos EUA, só superado pelo caso O.J. Simpson dois anos depois. Iron Mike foi condenado e cumpriu três anos de prisão; mais que isso, seu julgamento levantou uma série de questões dentro da própria sociedade americana. Uma delas, obviamente, foi o preconceito racial ainda evidente entre os americanos e, a segunda, foi a discussão sobre o “date rape”.
O termo, cunhado pela jornalista e feminista Susan Brownmiller em 1975, refere-se a situações em que, anteriormente ao estupro, criminoso e vítima mantinham qualquer tipo de relacionamento afetivo ou potencialmente sexual. Em outras palavras, quando, apesar do ato sexual não ter sido consentido, as conversas e encontros que o antecederam aconteceram por vontade de ambas as partes.
No caso de Tyson, a garota, de 18 anos, aceitou encontrar-se e acompanha-lo ao quarto de hotel, do qual saiu alegando ter sido estuprada. O episódio, que como outros do tipo acabam servindo de termômetro social, revelou uma série de interpretações para o fato, que iam desde uma absurda responsabilidade da menina, uma vez que aceitou ter ido até o quarto, até teorias da conspiração de que ela havia armado toda a situação. Basicamente o que vemos agora com Neymar.
O interesse sobre casos envolvendo celebridades naturalmente nos atraem. O “dilema de Capitu”, a coisa do “será que ele fez?”, somado com uma dose de sensacionalismo, quase que naturalmente acabam dominando o noticiário. No Brasil, soma-se a isso um interesse extra pela forma que tratamos essas pessoas. Reutilizado um trecho de outro texto, o brasileiro é, ao mesmo tempo, iconólatra e iconoclasta; em outras palavras, sente um prazer duplo diante do ídolo: primeiro ao exaltá-lo, e depois ao destruí-lo. Acompanhamos a ascensão desses meninos pobres que conquistam o mundo, uma jornada em que lhes permitimos tudo, mas quando atingem o topo, surge uma inveja por ver o mesmo menino pobre andando de Ferrari e namorando modelos (nota: não me refiro exclusivamente a Neymar, há uma série de exemplos em nossa história, com atletas, artistas, etc.). Neste sentido, nosso comportamento é quase antropofágico, venerando a vítima antes de comê-la. Por si só, portanto, o simples fato de alguém com a popularidade de Neymar estar envolvido em um escândalo já basta para todo o caos que estamos vendo. Porém, quando a situação envolve um crime sexual, a coisa extrapola a “sociedade do espetáculo” e passa a revelar outras facetas de nossa sociedade.
Neymar, de cara, já divide opiniões. São poucos os neutros em relação a ele; geralmente, ou se ama ou se odeia. Mais que isso, o caso também divide mulheres que sofrem assédio, preconceito ou mesmo agressão sexual todos os dias no país e não aguentam mais serem consideradas as vítimas deles (vale lembrar que uma parte grande da população considera que a roupa que a mulher veste “dá motivo” para um estupro) e uma sociedade machista que tende a culpa-las por tudo. Muito antes de vazarem os vídeos que, de fato, tornam a situação muito confusa, muita gente já havia estabelecido que era apenas o caso de uma interesseira tentando dar um golpe no atleta rico. E pode ser que tenha sido isso mesmo, afinal a investigação ainda está em curso. Mas pode ser também que uma mulher tenha sido estuprada, e é a forma que lidamos com este momento, este momento em que não sabemos o que de fato aconteceu, que revela nosso comportamento em situações como essas.
Os comentários são os mais variados. Eles vão desde a conclusão de que, uma vez que Neymar pagou passagens para Paris e estadia, a menina deveria transar com ele, até a noção, como no caso de Tyson, de que a moça, ao aceitar encontrá-lo num quarto de hotel, já havia aceitado fazer sexo com ele. Este tipo de pensamento é extremamente perigoso, pois é ele que alimenta os inúmeros casos de estupros praticados por homens que acreditam que, por terem pago o jantar, ou pela mulher ter ficado com ele na balada, aceitado carona para casa ou mesmo acompanha-los para seu apartamento, lhe dá o direito de transar com ela, como se ela não pudesse mudar de ideia, como se o “sim” de uma mulher fosse irrevogável. Enfim, como se existisse um ponto a partir do qual a mulher “não pode voltar atrás”.
Além disso, vemos argumentos que beiram a ignorância em relação ao que é o estupro, como o de que alguém como Neymar não precisa “estuprar para fazer sexo”. Estupro não é sexo. Quem o pratica não o faz por um tesão incontrolável e inadiável; estupro pressupõe uma relação de poder, de submissão, de força, de não aceitar ouvir “não”.
Em seguida, temos a dificuldade em aceitar o conceito de “date rape” que citamos acima. Importante lembrar que no Brasil, até o começo dos anos 90, o estupro entre marido e mulher era legalizado. Uma vez que o sexo é um dever do casamento, reconhecia-se o direito do marido de praticá-lo, mesmo contra a vontade da esposa. Visto por este ponto de vista, percebemos a dificuldade em entender que há estupro mesmo que as partes envolvida já mantenham uma relação, seja ela qual for, fato que é agravado pelo processo de normalização da barbárie que temos hoje.
Vivemos a normalização todos os dias, algumas de formas mais óbvias, outras nem tanto. Nós, moradores de metrópoles brasileiras, por exemplo, somos acostumados aos moradores de ruas ou a criminalidade. Não nos chocamos mais; gente passando fome na rua ou assassinatos passam por nós como, com toda certeza, não passariam para um morador de Helsinki, na Finlândia. No entanto, essa normalização se estende a questões mais silenciosas e reprimidas da nossa sociedade, como o preconceito racial; estamos tão acostumado a manifestações racistas que a luta de grupos anteriormente sem voz por respeito causa ódio, generalizado e chamado de forma quase pejorativa de políticamente correto. Da mesma forma, nossa sociedade está tão acostumada ao machismo que a luta das mulheres contra assobios e outras formas de assédio gera comentários vergonhosos como os que dizem que, sem essas praticas, irão acabar com o xaveco. Esse tipo de coisa é séria, pois ao normalizarmos determinadas situações, passamos a reconhê-las apenas em seus extremos.
Hoje, um crime só chama nossa atenção quando atinge o limite da barbárie. Da mesma forma, só se admite um caso de racismo quando um sujeito xinga o outro de “macaco” em plena praça pública e só se aceita que houve estupro quando o agressor armado arrasta a moça pelos cabelos para um terreno baldio; todas as demais maneiras que estas coisas podem ocorrer são relativizadas com todo tipo de argumento superficial.
Para piorar a situação, a moça atiçou até o último fio de cabelo da sociedade machista em que vivemos quando admitiu que queria transar com Neymar, que era uma fantasia sua, e que por isso foi até Paris. Já superada a possibilidade absurda sugerida acima, de que ela seria obrigada a tal uma vez que ele pagou as passagens, a manifestação provoca quem rejeita a possibilidade da mulher ter desejo sexual. Se todo o homem sonha em dormir com sua atriz favorita, a mulher, ao fazer o mesmo, só pode estar interessada em dinheiro, fama, golpe da barriga e etc. Desconsidera-se a possibilidade dela só querer transar com uma pessoa, não para ter filho, mas apenas para se divertir e ter uma história para contar. E, quando consideram tal possibilidade, a conclusão imediata é que trata-se de uma puta. É o pensamento retrógrado e hipócrita, dito por grupos que geralmente só reconhecem o direito da mulher sobre o próprio corpo em uma única situação: prostituição. Aí se adota o discurso liberal de que ela é livre pra fazer o que quiser. Em todo o resto, que inclui aborto, peso, maquiagem, roupas, depilação e com quem ou quantos ela dorme, está sempre sobre escrutínio masculino.
E este tipo de pensamento poderá ser visto também nas consequências do caso. Se for comprovado a agressão e/ou estupro, a imagem de Neymar pode sofrer um abalo, mas sua carreira irá continuar; infelizmente, o histórico do nosso futebol mostra que violência doméstica ou violência sexual não são o bastante para acabar com a carreira de um atleta. Se ele for inocentado, este caso será usado todas as vezes que algo parecido se repetir para justificar a já mencionada tendência de acusar a mulher até que se prove o contrário.
Por fim, uma menção esportiva, de alguém que, mesmo não sendo santista, cansou de ir em jogos do Santos para ver Neymar jogar. O que me fez me lembrar de Mike Tyson ao falar do jogador não foi necessariamente o fato de sofrerem a mesma acusação, mas o caminho de suas carreiras. Ambos são extremamente talentosos naquilo que escolherem fazer, e ambos também assistiram uma mudança do local em que suas carreiras repercutem; como Tyson, Neymar foi da página de esportes para a página de celebridades, e agora para as policiais. Independente de culpados ou inocentes, isso marcou a derrocada da carreira do pugilista, e pode significar o mesmo para Neymar, o que, do ponto de vista único e exclusivamente esportivo, seria um desperdício. É inevitável, quando um jogador passa a se afastar cada vez mais das páginas de esportes, isso significa que se distância também de sua própria carreira, que, afinal, é de atleta.
O objetivo deste texto, como expliquei acima, é independente do resultado do processo, e de quem for o culpado. O objetivo não era falar sobre um caso de estupro, mas analisar o nosso comportamento diante da possibilidade de um estupro. Neymar pode ser inocente ou culpado, e isso é entre ele, a justiça e, principalmente, a mulher que pode ter sido vítima de um crime bárbaro. Eventualmente, com o fim das investigações ou mesmo do julgamento, saberemos a verdade. As questões que casos como esses despertam em nossa sociedade não tem data para acabar.
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