No que pensa a moça sentada na escada da borracharia? Esse é um exercício útil para quando não se tem o que escrever: descer até a rua, acender um cigarro, focar num estranho e imaginar o que ele está pensando. As possibilidades literárias são infinitas.
Eu posso ser político e dizer que ela pensa no sofrimentos das mulheres todos os dias. Posso ser lacrador, e dizer que ela planeja o próximo passo na queda do patriarcado. Posso ser romântico e imaginá-la sonhando com seu amor. Ou ser brega, imaginando-a com saudade de um amor que passou. Posso ser machista e dizer que ela só pensa em quando irá encontrar um marido. Ou ser misógino, e dizer que ela não pensa. Posso ser cristão e dizer que ela pensa em Deus; nietzschiano e pensar que ela está negando Deus; ou ainda evangélico, e concluir que ela está pensando onde arranjará aqueles quinhentos reais que o pastor pediu. Com essa última, eu mato dois coelhos com uma paulada só - sou evangélico e preconceituoso.
Posso ser orwelliano é imaginá-la refletindo sobre a opressão de um governo com pinta de fascista; kafkaniano e tomá-la como presa em desespero; dickensiano e imaginá-la numa família comicamente marginalizada. Posso supor que ela está conversando com o espírito de sua bisavó e ser fantástico. Ou que ela é um alien desvendando o 42 e ser fantasia. Posso dizer que ela é mais uma mulher esperando para ser salva e ser um clichê.
Posso narrá-la como o drama da filha do borracheiro agressivo; ou como a história de superação da filha do pobre borracheiro. Ou, ainda, como uma milionária que senta em escadas de borracharias para fugir da alienação de sua bolha rica. Posso imaginá-la refletindo sobre algo completamente trivial e ser pop. Ou usá-la para uma reflexão profunda e ser chato. E posso levantar e perguntar no que ela está pensando, e assim ser o inconveniente que aborda pessoas na rua.
O paradoxo é que eu nunca saberei o que ela está pensando, nem ela jamais pensará nenhuma das minhas ideias que, afinal, são minhas. Por isso ela é real e meu texto ficção. Cabe ao leitor decidir qual dos dois ele prefere ouvir.