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O espírito das leis e a vitória de Max

No direito, existe um conceito chamado “espírito da lei”, ou “mens legis”, em latim, conforme cunhado por Rudolph von Ihering. De forma bastante resumida, ele nos remete à importância de considerarmos a intenção do legislador quando cria uma lei. Mais do que isso, também pressupõe a verdade inconveniente de qualquer sistema jurídico: de que, por serem criadas por seres humanos, as leis possuirão falhas e contradições, além de enfrentarem situações até então imprevisíveis. Daí a importância, portanto, de, mais que o próprio texto, nos lembramos da intenção da lei ante essas contradições.

Obs.: prometo que este texto chegará na Fórmula 1. Aguente firme.

Peguemos um exemplo hipotético. Imagine que amanhã surja uma lei que diga que, em caso de falecimento dos pais, a criança obrigatoriamente ficará sob a guarda dos avós. Aí, um dia, acontece o caso concreto e uma criança fica orfã. No entanto, três dos quatro avós não estão mais vivos, e o que restou tem um histórico de violência. Paralelamente, a criança também tem uma tia amorosa, com um lar estável e que quer a guarda. Qual a solução? Obviamente, deixar a criança com a tia, pois a despeito do que diz o texto, a intenção dessa nossa lei hipotética é garantir o melhor para a criança. E ainda que se defenda que em 99% das vezes a melhor solução seja os avós, neste caso concreto não é. Neste caso, o melhor para a criança é a tal tia. Essa seria a decisão que honraria o espírito da lei.

Dito tudo isso, agora Fórmula 1 e a polêmica da decisão do campeonato.

Não existe nenhuma regra no regulamento da F1 que impeça que uma corrida acabe com Safety Car. Nos últimos tempos, no entanto, a FIA tem tentado evitar essa situação de todas as formas. O GP de Baku, na 6ª corrida da temporada, foi um exemplo disso.

Para quem não se lembra, Verstappen liderava com folga, até sofrer um furo de pneu a 5 voltas do fim, que fez com que ele batesse no muro. O Safety Car foi acionado mas, ao se perceber que não daria tempo de limpar a pista até o fim da corrida, a direção da prova anunciou a bandeira vermelha, interrompendo a mesma, e depois relargando para uma última volta. Ontem, em Abu Dhabi, o comportamento foi parecido.

Obs.2: Michael Masi é tão inconsistente que se o substituirmos por um par de dados, como num jogo de RPG, e os jogarmos aleatoriamente a cada decisão necessária, teríamos soluções mais lógicas do que ele apresentou esse ano. Isso precisa ser dito porque é dessa inconsistência, que se reverte na insegurança de todos, que nasce tanta polêmica. Feita a ressalva, prosseguimos.

Todas as decisões tomadas ontem a partir do acidente de Latifi tiveram como objetivo impedir que o campeonato acabasse sob o Safety Car. Isso inclui a decisão de só adiantar os retardatários que estavam entre os dois postulantes ao título e até a manobra radical do Safety Car para entrar nos boxes e não cruzar a linha de chegada. E acredito que foi a decisão correta porque o espírito do regulamento é promover uma corrida de Fórmula 1. É isso que move milhões de fãs ao redor do mundo: assistir pilotos disputarem no limite da velocidade. Sem dúvida, o resultado mais injusto ontem, independente do vencedor, seria o campeonato mais espetacular do século ter terminado a 150 por hora atrás do Safety.

A Mercedes reclama pois estava na frente, mas, fosse o inverso, teríamos tido o mesmo desenrolar, com a diferença que agora seria a Red Bull protestando contra a decisão. E tanto agora com a escuderia alemã, quanto neste multiverso em que a Red Bull liderava e foi ultrapassada por Lewis na última volta, a reclamação das equipes é um contra-senso. É como um jogador de futebol pedindo para o jogo terminar aos 44 do segundo tempo. É querer menos disputa, e isso não faz sentido em um esporte de competição. A decisão da FIA ontem, no final das contas, foi permitir a competição até o último segundo.

Apesar do comportamento errático ao longo de toda a temporada, não há nada que indique favorecimento para um ou para outro. E como já disse acima, acredito que, estivessem os pilotos em posição inversa, a solução seria a mesma. Não tenho provas, mas tenho convicção.

Ontem, na corrida de maior audiência em sabe-se lá quanto tempo, no campeonato mais disputado em décadas, a direção da prova se valeu de tudo que podia no regulamento, inclusive as brechas, para permitir mais uma volta e, ao fazer isso, possibilitou um momento final que será lembrado para sempre. E, como fã de automobilismo, acho que decisões tomadas neste sentido serão sempre as mais justas.

Se a performance de Senna em Monâco em 1984, voando de Toleman na chuva, já é histórica mesmo com a interrupção da corrida, imagine se tivessem permitido mais uma volta e, consequentemente, a disputa com Prost pela liderança? Com certeza algo memorável sairia disso, seja para um, seja para outro.

No final das contas, a decisão mais errada da corrida de ontem não foi da direção da prova, e sim da Mercedes, ao não parar Lewis para trocar os pneus. Tanto a equipe quanto o piloto inglês vão remoer isso por muito tempo. Na Red Bull, hoje se acredita em milagres. A disputa absurdamente acirrada entre dois gênios acabou decidida por uma tentativa de ultrapassagem do último sob o penúltimo colocado. Insano, maluco, imprevisível. Mas, depois de tudo que aconteceu esse ano, a temporada de 2021 não poderia terminar de outra maneira.



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