Vi, vivi, venci e sobrevivi. Essa é história de como tudo aconteceu. Começo assim porque é difícil encontrar uma maneira de abrir esse texto. Antes de tudo, é difícil explicar o que nos leva a viajar milhares de quilómetros atrás de um time de futebol. No seu livro “Forasteiros”, Rodrigo Barneschi escreve uma frase bonita. Diz que seguimos o clube “não por acreditar que a vitória virá sempre, mas por saber que precisa acompanhá-lo, mesmo quando a derrota parece ser o desfecho mais provável. (...) não pelos onze homens que vão a campo, mas pelas onze camisas que ao campo poderiam ir sozinhas”. Gosto dessa explicação, embora eu saiba que ela é inútil para alguém que não gosta de futebol. Azar dessas pessoas.
Logo de cara, surpreendeu a superioridade de torcedores do Flamengo. No aeroporto de Guarulhos nós, palmeirenses, já éramos minoria. Eu fiquei em Colônia de Sacramento, 200km de Montevidéu, e o que ouvíamos dos amigos em outras cidades era que Punta del Leste e a capital uruguaia estavam tomadas de rubro-negros. Tudo se confirmou na chegada ao estádio: 2/3 da das pessoas estavam vestindo vermelho e preto. Mesmo assim, na hora do jogo, só se ouviu a torcida do Palmeiras, salvo num breve intervalo em que o Flamengo empatou e Michael perdeu um gol em seguida. Nesse momento a Nação explodiu por alguns minutos, mas foi isso. Daí a piada de que a Anita cantou mais que a torcida do Flamengo no jogo (ela por 6 minutos, a Nação por 5). Conversando com flamenguistas antes e depois da decisão, ouvi muito a reclamação de que a maioria ali eram “flamenguistas de fora do Rio”, ou seja, que não iam ao Maracanã. Eles mesmos estavam incomodados com a maneira que a torcida se comportou. Creio que o preço da viagem, que seleciona determinado tipo de torcedor, talvez tenha cumprido um papel decisivo aí.
A organização do jogo, tanto da cidade de Montevidéu quanto da Conmebol, foi muito melhor do que o esperado. Chegada tranquila, policiamento presente mas sem nenhuma agressividade e checagem rápida de ingressos e vacinação, mesmo na área de arquibancada, onde fiquei. Em poucos minutos estávamos lá dentro. Apesar disso, houve um momento cômico: usei máscara contra Covid o tempo todo, mas quando me aproximava do estádio, amontoado com milhares de torcedores, um policial se aproximou de mim e me mandou tirar a máscara. A justificava pouco sanitária foi de que era para acelerar o processo de checagem de documentos. Vá entender. Uma vez lá dentro, no entanto, as máscaras desapareceram dos rostos. Em tese, todos ali estavam vacinados, mas não é impossível burlar os protocolos: um grupo de palmeirenses me confessou que apenas um deles havia feito o PCR para viajar, e os outros alteraram o documento no photoshop. Ou seja, 15 pessoas viajaram pro Uruguai com o mesmo exame. Não sei qual a dificuldade de fazer um exame, mas enfim, foi o que fizeram.
Sobre o Uruguai. Desde a mudança, sempre fui um crítico da final em jogo único. No sábado, porém, mesmo antes do jogo começar, já havia mudado de opinião. Óbvio que serei acusado de só estar dizendo isso porque ganhei, mas juro que estou sendo sincero. O clima de peregrinação, a maneira como o país sede é tomado pelos torcedores, a espera pela partida junto com outros tão apaixonados quanto você criam uma experiência que somente a partida única proporciona. Os uruguaios também estavam empolgados com o jogo, em especial os torcedores do Nacional, bastante envolvidos com Palmeiras. Percebi também uma certa rixa deles com Arrascaeta: muitos diziam que ele não joga na seleção o que joga no Flamengo; isso parecia motivá-los a torcer contra o jogador.
O lado ruim do jogo único em campo neutro são os preços. Alguns serviços como táxi, venda de cerveja e até o exame de covid para a volta foram claramente inflacionados. Isso sem contar as passagens de avião, que chegaram a custar mais de 4 vezes do que num fim de semana normal. Não foi uma exclusividade do Uruguai. Acontecerá ano que vem na final em Guayaquil, e em todas as outras que forem sede da decisão. Também é questionável a decisão de não vender cerveja nem no estádio e nem nos pontos de concentração das torcidas. Na prática, isso provocou o abandono do ponto de concentração, que acabou acontecendo alguns quilômetros adiante, numa praça com bares e vendedores ambulantes.
Agora sobre o jogo:
Desde que ele terminou, já assisti aos melhores momentos dezenas de vezes. Quando David Luiz recua, no exato momento em que Andreas dá o primeiro toque na bola, João Guilherme, da ESPN, narrava “é preciso dar a vida” - Andreas deu. Morreu em campo ao entregar a bola para o Palmeiras no lance que definiu a partida. Uma marca cruel que ficará para sempre na carreira do jogador. A prova disso é que no apinhado aeroporto para o voo de volta, a torcida palmeirense cantou o nome de todos os atletas campeões e também o de Andreas Pereira. Se há uma esperança para o jogador (e para a torcida rubro-negra) é que o mesmo imponderável que amaldiçoou Andreas no sábado, pode tranformá-lo em herói amanhã. Vide Deyverson.
Deyverson é um caso a ser estudado. Já na história pelo gol do título, ficará marcado também como mais um personagem foclórico do nosso futebol. Na arquibancada verde, quando o camisa 9 entrou no lugar de Veiga, o clima era de desespero, e o rapaz precisou de apenas 4 minutos para levar essa mesma torcida incrédula ao delírio absoluto. Entre polêmicas e encenações grotescas (Pitana que o diga), Deyvinho (agora chamado de “Deusverson”) já fez o gol de um título brasileiro (contra o Vasco em 2018) e agora decidiu uma Libertadores. O verdadeiro menino maluquinho, que o que falta de parafuso ele compensa em coração, viveu e proporcionou algo que somente o futebol permite.
E Abel? Bom, Abel Ferreira é um psicopata. Desafia a lógica e ganha. Seu estilo “deixe a bola, leve a vitória” acumulou sua terceira taça, mesmo sendo muito criticado desde o jogo contra o São Paulo. Sua linha de 5 funcionou no primeiro tempo e o Palmeiras foi perigoso. No segundo tempo, porém, abdicou totalmente do jogo. Era bola no Weverton e chutão para frente, enquanto o Flamengo criava cada vez mais chances. Não vou mentir, quando Gabigol marcou, o pessimismo tomou conta e foi o único momento que o a torcida palmeirense se calou no estádio. Quando a prorrogação começou, a expectativa geral era que seriam mais 30 minutos de massacre flamenguista e o gol acabaria saindo. Mas o português surpreendeu de novo e o Palmeiras recomeçou atacando. E veio o gol. Em duas finais seguidas, tirou do bolso dois heróis improváveis: Breno Lopes e Deyverson. O resto é história.
Com o título, o que já é para ser uma viagem emocionante se transforma em catarse. O momento do apito final e eu, André, Rafael e Tutu (meus companheiros de viagem) pulando pela arquibancada abraçando desconhecidos é uma memória sem preço que levarei até o fim da minha vida. São os momentos que alimentam mais uma década de fanatismo e que fazem os dez anos anteriores valerem a pena. O coração que se parte na derrota, dobra de tamanho na vitória; hoje, o coração de todo palmeirense é do tamanho da América do Sul. Para quem sofreu em 2014 com medo do tri rebaixamento, ver o time agora tri campeão da Libertadores é um delírio.
Depois de tudo isso, só falta voltar para casa. Fica um elogio ao espírito esportivo dos flamengusitas que encontrei ao longo de toda viagem. Não vi nenhuma agressão, e mesmo no embarque de volta, onde todo flamenguista que chegava era saudado com um coro de “O Flamengo perdeu a final/o Flamengo perdeu a final/com gol do Deyvinho/perdeu a final”, ao ritmo da famigerada “Palmeiras não tem mundial”, todo mundo levou na brincadeira ou, no máximo, ignorou completamente. Outro destaque é o protocolo de entrada para o Brasil - enquanto o Uruguai exigiu e conferiu uma série de documentos, incluindo comprovante de vacinação e PCR com menos de 72 horas, o Brasil se satisfaz com um exame de farmácia que a maioria dos torcedores fizeram antes de deixar o Uruguai, além de um formulário da Anvisa que se limita a perguntar se você está com algum sintoma de Covid. Nem o formulário nem os exames foram conferidos quando chegamos em Guarulhos.
E foi assim. Recomendo a todos os torcedores que tiverem a oportunidade de decidir um jogo fora de casa, independente do time ou do favoritismo, à irem para decisão. O sentimento do “eu tava lá”, que sinto toda vez que vejo os lances do jogo, é inigualável. Ganhar uma Libertadores é inigualável. Ser apaixonado por um time, afinal, é a eterna busca por momentos assim.