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Um dia de Brasil

O maior erro que se pode cometer em relação à história é acreditar na distância temporal. A frágil ilusão de que já estamos livres e absolvidos daquilo que ocorreu há dez, vinte, cinquenta ou até cem anos atrás é uma conclusão conveniente que a cada dia ganha mais força neste mundo imediatista, que muda de forma tão abrupta que já é quase impossível se lembrar o que ocorreu há cinco anos, o que dirá antes disso. Basta pensar que o primeiro Iphone foi lançado em 2008, e como nossas vidas mudaram desde então.

Para combater esse engano em relação ao tempo, propus um exercício: comprimi os 519 anos de Brasil em 24 horas, na esperança que em menores intervalos de tempo seja mais fácil entender nossa história. Assim, nosso dia hipotético começa à 00:00, em 1500, com o descobrimento, e vai até às 23:59, 2019.

Começamos pela história dos negros no Brasil. Fomos “descobertos” às 00:00; 02:30, duas e meia da madrugada, inicia-se o tráfico negreiro (1550), que dura até o fim da tarde, 18:00 (1888). Ou seja, das 24 horas de nosso país, os negros estiveram escravizados por mais de 15. Pouco depois das oito da noite (1934), eles receberam o direito ao voto, e lá pelas onze e quinze inicia-se as políticas de cotas nas universidades (2002). Mais uma vez: 24 horas de um dia, eles receberam o direito de serem livres às 18:00, e de participar da sociedade a partir das 20:00. A história do negro, enquanto cidadão, tem pouco menos de 4 horas em nosso país.

Passamos agora para as mulheres. Às 15:00 (1827) as meninas foram liberadas para frequentar a escola, mas até um pouco depois das 20:00 (1934), cidadão era apenas o homem, e a mulher não tinha direitos. Por volta das 20:30, ela conquistaram o direito ao voto (1937). 22:00 é aprovada a lei do divórcio (1977), e as mulheres são autorizadas a praticar qualquer esporte (1979). 22:45 torna-se crime o estupro do marido na esposa (1993) e, pouco depois das 23:00, falta de virgindade deixa de ser motivo para anulação do casamento (2002). Alguns minutos depois, surge a Lei Maria da Penha (2006), para combater a violência contra a mulher. Assim como para os negros, o “dia Brasil” foi assustadoramente cansativo para elas, que só passaram a receber direitos plenos a partir das oito da noite.

Em relação à comunidade LGBT, a coisa é ainda mais assustadora: o primeiro grande marco em relação a liberdade de orientação sexual no Brasil ocorreu apenas às 22:30, quando a Associação Brasileira de Psicologia considerou que a homossexualidade não prejudica a sociedade (1984). Depois disso, as outras conquistas vieram praticamente todas depois das 23:30: STF reconheceu a união estável entre casais homossexuais (2011); CNJ proíbe que cartórios recusem a habilitação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (2013) e só agora, às 23:59 (2019), o STF começa a julgar o projeto que trata da criminalização da homofobia, proposto em 2006. A comunidade LGBT possui direitos no Brasil há praticamente meia hora.

Tudo isso sem falar nos índios, cuja a evolução dos direitos é a mais fácil de se observar: desde à 00:00, quando o primeiro europeu pisou aqui, eles só os perdem.

Politicamente, a coisa também é interessante. Nos tornamos independentes por volta das 15:00. Desde então, acumulamos nove golpes de estado: Um minuto depois da independência, já teve a “Noite da Agonia” (1823); às 16:00, o “Golpe da Maioridade” (1840); 18:00, a Proclamação da República, que não deixou de ser um golpe que encerrou o período monárquico (1889); Menos de um minuto depois, veio o Golpe de 3 de novembro (1891) e, logo depois, o mandato de Floriano Peixoto após a Primeira Revolta Armada; às 08:00, as coisas ficaram complicadas, como uma série de golpes em sequência, começando pela Revolução de 30 (1930), seguido pelo “Estado novo” (1937) e a queda de Getúlio Vargas (1945). Às 21:30, veio o Golpe Militar de 64. Vivemos a hora mais longa de nossa história, até vir a democracia por volta das 22:40. Somos um país democrático há menos de uma hora e meia.

Como visto, esse Brasil que conhecemos não é nada. Existe há duas horas no máximo, e duas horas não são o bastante para se apagar ou corrigir um dia inteiro de desigualdade. No mundo da internet que aceita tudo, e das pessoas que a cada dia consomem mais informação e menos conhecimento, presunçosas de que o mundo começou a partir de quando elas nasceram e se resumem ao que elas viveram, há uma tentativa de se relativizar o passado, pela mera questão da distância temporal. Mas não há distância; o passado ocorreu há algumas horas, minutos, segundos. E o relógio não para.

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