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Segunda Vida

Pouco menos de dez anos atrás, um jogo chamado Second Life chamou a atenção das pessoas diante da possibilidade dos usuários de, como o próprio nome sugere, viver uma segunda vida virtual, com direito a relações sociais, relacionamentos e até sexo. Era basicamente um The Sims, com a diferença que os personagens do jogo representavam pessoas reais.

Em um mundo em que as redes sociais ainda não tinham a proporção que têm hoje, o jogo foi considerado um “exagero de vida virtual”, e não faltaram especialistas julgando e questionando os malefícios que poderia acarretar nas vidas das pessoas.

Ironicamente, no entanto, hoje percebemos que os usuários do game não eram apenas pessoas “tristes, infelizes e carentes” como muitos tentaram defini-las, e sim pioneiras – atualmente, todos nós jogamos Second Life, mesmo sem perceber (ou, então, somos também um bando de gente triste, infeliz e carente).

Se a realidade é o campo do ser, as redes sociais tornaram-se o espaço do querer-ser em nossas vidas. Eu sou, on-line, quem eu quero que você pense que eu sou, e você é para mim aquilo que tenta mostrar ser.

Uma das maiores críticas ao jogo era o fato dos avatares, reprodução digital dos usuários, quase nunca corresponderem a real aparência física dos mesmos. Gordos tornavam-se magros, magros em fortes, todo mundo tentando parecer outra pessoa e esconder o que acreditava ser um defeito. Se você abrir o Instagram, o mesmo continua acontecendo – imagens são manipuladas e filtradas para que possamos parecer mais felizes e bonitos.

Não serei hipócrita, posto fotos tanto quanto qualquer pessoa, pois, inegavelmente, ela ajuda com que eu me sinta melhor comigo mesmo: ajuda porque, quando uma garota linda curte minha foto, isso compensa a perpetua insegurança que tenho em relação a minha aparência; ajuda porque, quando alguém dá like em um texto meu, isso de certa forma valida a escolha que eu fiz de largar tudo por uma carreira de escritor, que nos dias bons soa hipotética, mas na maioria das vezes é apenas irreal. Me sinto como o cara comum tentando ser Tyler Durden, bonito e descolado, e as redes sócias as vezes parecem o clube da luta do qual preciso para me sentir mais vivo, ainda que leve alguns socos e pontapés. Eu sou o inflamado senso de rejeição de Jack.

Cada vez mais dependemos da internet para validar nossas escolhas e supercompensar nossas frustrações. Quando isso é “usado para o mal”, somando-se a equação a questão do anonimato e a aparente crença de que as regras de educação e respeito do cotidiano não se aplicam atrás de uma tela, temos essa fogueira das vaidades, aquecida pelos esqueletos no armário para queimar as nossas próprias bruxas.

Por exemplo, por imaginar que uma garota tão linda jamais lhe dará bola, o sujeito entra na página dela e a chama de puta, ou então a manda lavar pratos, pois isso o ajuda a, pelo menos virtualmente, tentar impor uma superioridade ao que ele não se sente capaz de sentir na vida real. Este é um dos vários exemplos (preconceito é o que não falta na internet), todos com o mesmo objetivo: encontrar um alvo para que, diminuindo-o, sinta-se mais confortável consigo mesmo.

Verdade seja dita, porém, não acredito que tudo seja apenas maldade humana. Há um pouquinho de carência também nessas pessoas. Somos tão sozinhos. Conectados vinte e quatro horas, com quinhentos amigos, setecentos seguidores... ainda assim sozinhos. E como crianças que fazem birra para chamar a atenção, ser um grande filha da puta na internet ajuda a te fazer o centro das atenções, batendo boca com Deus e o mundo. Só para deixar claro, não estou passando a mão na cabeça do imbecil, apenas sugerindo que existe mais motivos para seu comportamento além da própria imbecilidade.

O espaço livre que deveria, por consequência, ser democrático e com pluralidade de ideias, é hoje uma bolha de ódio e masturbação, um fetiche sadomasoquista de prazer e dor. É masturbação porque é individual, para ser sexo necessitária haver troca. É ódio porque, em última análise, todas as ações são motivadas pelo o que odiamos em nós ou nos outros.

As redes sociais são o grande fetiche humano do século XXI, e são também a igreja, o tribunal do júri, a formadora de opinião e o arauto da moral e bons costumes. É através dela que se pode sentir o pulso das sociedades modernas – sem as máscaras da vida cotidiana, as personalidades individuais se revelam, e as urgências, medos, traumas, frustrações e preconceitos das pessoas se evidenciam. Elas se entregam por seus atos, não por suas palavras.

Noventa por cento do que está escrito nas redes sociais é lixo. O que fica é a motivação das pessoas em compartilhar aquilo.

Por que é importante para você postar a foto de biquíni com os peitos quase saltando para fora? Ou o textão diminuído todos os pontos de vista diferentes do seu? Quem nunca compartilhou matérias sobre filmes ou livros que nunca viu apenas para parecer mais inteligente? Por que a gente compartilha? Para quem? Dizem que é para os outros, mas é bobagem. As redes sociais não têm nada de social. Fazemos tudo por nós mesmos. No entanto, ao tentar vender felicidade e satisfação, falhamos por cometer o erro fatal de qualquer vendedor: não acreditamos no produto. Não acredita? Bastar analisar o crescimento da depressão e ansiedade neste século. É como ver o aumento da temperatura da terra depois da Revolução Industrial e alegar que não há nenhuma relação. O espaço virtual é uma fantasia que nos permite mentir para nós mesmos em relação as nossas frustrações diárias, porém ela não preenche o vazio, pois tudo nela é efêmero, superficial e passageiro.

Chegará um momento em que as relações pessoais se tornarão inviáveis, pois ninguém será capaz de corresponder na realidade o que aparenta ser virtualmente. É como querer namorar aquela menina da foto, mas não sua versão de carne e osso, com seus defeitos, imperfeições, desejos e expectativas. E ela pensará o mesmo de você.

A gente lê mais, e aprende menos. Fala mais, e diz menos. Ouve sem escutar. Estabelece relações, mas não relacionamentos. Obtemos aproximação, mas sem intimidade. E tudo isso está nos deixando loucos. Frustrados, deprimidos, ansiosos, raivosos, infelizes e loucos.

Estamos lentamente nos tornando o avatar de nós mesmos, igual ao Second Life. Com a diferença que, vida real, só temos uma.

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